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Devolução de Benefícios Previdenciários Pagos por Liminar Revogada

Larissa Búgida Aguiar de Carvalho, advogada, OAB/CE 36.518

Tel. (85) 9 9787 7572


Introdução


Gestores operacionais de Regimes Próprios de Previdência Social (RPPS) frequentemente se deparam com uma situação delicada: um segurado ou servidor recebeu benefícios previdenciários graças a uma decisão judicial liminar (provisória) que, mais tarde, foi revogada. Surge então a dúvida: deve o RPPS exigir a devolução desses valores pagos indevidamente? Trata-se de questão complexa, que envolve jurisprudência dos tribunais superiores e princípios jurídicos relevantes. Neste artigo, apresentamos uma visão geral sucinta e prática do tema – desde o entendimento dominante no STF e STJ até os fundamentos jurídicos (boa-fé, caráter alimentar, enriquecimento sem causa) e, principalmente, orientações para a tomada de decisão administrativa embasada na legalidade, transparência e segurança jurídica.


Jurisprudência do STF e do STJ sobre a Devolução


Superior Tribunal de Justiça - STJ
Superior Tribunal de Justiça - STJ

STF (Supremo Tribunal Federal) – A posição prevalente do STF tem sido proteger o beneficiário de boa-fé, dispensando a restituição de valores recebidos sob uma liminar posteriormente cassada. Em diversos julgados, o STF entendeu não ser necessária a devolução de parcelas previdenciárias ou remuneratórias recebidas de boa-fé, mesmo que a decisão (judicial ou administrativa) que amparou o pagamento tenha sido depois modificada​. Esse entendimento ampara-se em princípios como a confiança legítima (boa-fé objetiva) do beneficiário na manutenção do benefício e o lapso temporal em que ele efetivamente dependeu dessas quantias​. Em outras palavras, os segurados acreditavam na validade do direito (muitas vezes respaldado pela jurisprudência da época) e utilizaram os valores de natureza alimentar para sua subsistência. Por isso, o STF tem afirmado que os princípios da boa-fé e da segurança jurídica afastam o dever de restituição desses valores​. Vale destacar um exemplo: em 2018, a Primeira Turma do STF decidiu que não cabia exigir de um servidor a devolução de vantagem recebida por liminar, dado que quando a liminar foi concedida a jurisprudência era favorável a ele, mas mudou depois – configurando assim uma confiança legítima frustrada por mudança de entendimento​. Nessa decisão, ficou claro que verbas de caráter alimentar recebidas de boa-fé, ainda que “a título precário”, são irrepetíveis (não precisam ser devolvidas)​. Em suma, no âmbito do STF prevalece a ideia de que, se houve boa-fé e natureza alimentar, não se deve exigir a devolução.


STJ (Superior Tribunal de Justiça) – No STJ, por sua vez, consolidou-se um entendimento em sentido oposto, enfatizando o princípio da reversibilidade das decisões liminares. Em julgamento de recurso repetitivo (Tema 692), a Primeira Seção do STJ fixou a tese de que a reforma de decisão que antecipou a tutela obriga o autor da ação a devolver os valores de benefícios previdenciários ou assistenciais recebidos. Inclusive, definiu-se que essa devolução pode ser feita mediante desconto mensal, não excedendo 30% de eventual benefício que o beneficiário ainda receba​. Esse entendimento – inicialmente firmado em 2014 – foi reafirmado em 2022 pelo STJ, à luz de alterações legais que reforçaram tal posição. Para o STJ, quando alguém recebe pagamentos por força de uma decisão provisória, não se pode presumir a definitividade nem a boa-fé no sentido jurídico de legítima confiança, pois a parte sabe (assistida por seu advogado) que aquele pagamento tem natureza precária​. Permitir que não houvesse restituição, segundo a corte, desvirtuaria a tutela antecipada, cujo pressuposto básico é justamente a possibilidade de reversão do que foi concedido provisoriamente​. Em outras palavras, do ponto de vista do STJ, ao aceitar uma liminar favorável, o beneficiário assume o risco de ter que devolver os valores caso perca a causa, já que a medida é precária e condicionada à confirmação no julgamento final. Esse entendimento também busca evitar qualquer enriquecimento indevido às custas do erário, como veremos adiante. Importante lembrar que o STJ admite exceções em situações extraordinárias: a própria 1ª Seção reconheceu que, se a revogação da liminar decorreu de mudança de jurisprudência superveniente, deve-se ponderar uma modulação de efeitos – ou seja, avaliar se é justo exigir devolução nesse contexto específico, dada a segurança jurídica daquele precedente inicial​. De modo geral, entretanto, a orientação vinculante do STJ tem sido pela necessidade de devolução, seguindo inclusive previsão expressa em lei para os regimes previdenciários.


Conciliação dessas posições? Nota-se, portanto, uma tensão entre as duas cortes superiores. Enquanto o STF enfatiza boa-fé e caráter alimentar para afastar a devolução, o STJ ressalta a reversibilidade e a vedação ao enriquecimento sem causa para impô-la. Na prática, muitos tribunais e gestores tendem a adotar a orientação do STF quando há clara boa-fé e natureza alimentar envolvidas – afinal, trata-se de garantir direitos fundamentais do segurado. Inclusive, decisões de segundo grau frequentemente citam ser “pacificado pelo Supremo” o entendimento de que não se deve restituir verbas alimentares recebidas de boa-fé por força de tutela depois revogada​. Contudo, é fundamental que o gestor de RPPS conheça ambos os entendimentos e identifique em cada caso qual situação prevalece, evitando atos administrativos contrários à lei ou aos precedentes aplicáveis.


Fundamentos Jurídicos Aplicáveis


Ao decidir sobre cobrar ou não a devolução desses valores, o gestor deve equilibrar diferentes fundamentos jurídicos:

  • Boa-fé objetiva e confiança legítima: A boa-fé objetiva é um princípio que exige lealdade e confiança nas relações jurídicas. No contexto previdenciário, isso se traduz na confiança do beneficiário na validade da decisão judicial que lhe concedeu o benefício. Se o segurado recebeu os valores acreditando legitimamente que eram devidos – e não agiu com má-fé ou fraude – há um forte argumento jurídico para não penalizá-lo exigindo devolução. O STF invoca a boa-fé objetiva justamente para proteger quem confiou na ordem judicial e organizou sua vida com base naquele rendimento​. Especialmente nos casos em que a jurisprudência dominante apoiava o pedido na época da liminar, entende-se que o beneficiário tinha razão para confiar que o benefício seria mantido, reforçando sua boa-fé. Assim, retirar-lhe recursos já recebidos e possivelmente gastos em necessidades básicas poderia ferir a confiança legítima e a própria segurança jurídica das decisões judiciais.


  • Caráter alimentar dos benefícios: Benefícios previdenciários (aposentadorias, pensões, etc.) possuem nítido caráter alimentar, ou seja, destinam-se ao sustento do beneficiário e de sua família. Esse fato tem relevância jurídica na teoria da irrepetibilidade dos alimentos, princípio pelo qual valores recebidos para subsistência não devem ser devolvidos mesmo se depois constatado que eram indevidos. O racional aqui é claro: quantias de natureza alimentar usualmente são consumidas para atender necessidades vitais, não ficando enriquecimento ou poupança a ser devolvida. O STF e outros tribunais aplicam esse princípio analogicamente em matéria previdenciária. Por exemplo, já se afirmou que é “dispensada a reposição ao erário de verbas alimentares recebidas de boa-fé”, justamente porque essas verbas têm natureza alimentar e foram obtidas legitimamente pelo segurado​. Em resumo, o Direito repugna exigir de volta valores que serviram para alimentar, vestir ou medicar alguém, salvo em situações excepcionais. Este fundamento pesa em favor do segurado e tem sido um pilar das decisões que afastam a devolução.


  • Vedação ao enriquecimento sem causa: Por outro lado, há o princípio clássico de que ninguém pode enriquecer injustamente às custas alheias. No contexto em análise, a preocupação é com o erário público: se o RPPS pagou benefícios indevidos por um período, permitir que o beneficiário conserve esses valores após perder a causa poderia configurar um enriquecimento sem causa em detrimento do patrimônio público. O STJ tem usado fortemente esse argumento. A lógica é que a tutela antecipada, por lei, deve ser reversível – portanto, se a pretensão do autor não é confirmada, não há fundamento jurídico para que ele permaneça com os valores. Seria uma vantagem sem base legal, às expensas do RPPS (e indiretamente, dos cofres públicos e demais segurados). Esse princípio é visto como de ordem pública e aplicável com ainda mais rigor quando quem arca com o prejuízo é o tesouro público​. Em apoio a essa ideia, existe frequentemente uma base legal explícita: por exemplo, o art. 46, §3º da Lei 8.112/90 (Estatuto dos Servidores Federais) determina que, se uma decisão liminar ou tutela antecipada for revogada, os valores recebidos em decorrência dela devem ser devolvidos, atualizados até a data da reposição. De forma semelhante, a legislação do Regime Geral de Previdência (INSS) foi alterada em 2019 para prever, na Lei 8.213/91, art. 115, II, que pagamentos indevidos de benefícios, inclusive por decisão judicial posteriormente cassada, poderão ser descontados dos benefícios devidos, respeitado um limite (30%). Essas normas positivam o princípio da legalidade: o administrador público tem o dever de buscar a restituição de valores indevidos, sob pena de causar dano ao erário. Então, do ponto de vista jurídico, há um forte fundamento para exigir devolução a fim de evitar o enriquecimento sem causa e cumprir a lei.


Em cada caso concreto, esses fundamentos devem ser ponderados. Não raro, eles entram em aparente colisão. Por exemplo, exigir a devolução (para evitar enriquecimento injusto e cumprir a lei) pode conflitar com a boa-fé do segurado e o caráter alimentar do benefício. Nessa análise, os tribunais têm sopesado circunstâncias específicas – como a existência ou não de má-fé, a origem do equívoco (erro da Administração, mudança jurisprudencial inesperada, etc.), o impacto social da cobrança, entre outros. O gestor de RPPS precisa ter ciência desses princípios para tomar decisões equilibradas, que se sustentem jurídica e moralmente.


Orientações Práticas para Gestores de RPPS


Diante desse quadro, o que um gestor operacional de RPPS deve fazer ao se deparar com benefícios pagos por força de liminar posteriormente revogada? Seguem algumas orientações práticas para nortear a decisão administrativa, pautadas na legalidade, transparência e segurança jurídica:


  • Verifique a base legal e a decisão final: Em primeiro lugar, analise atentamente o teor da decisão judicial final que revogou a liminar. Há determinação expressa sobre restituição? Alguns julgados já decidem se o beneficiário deve ou não devolver as parcelas recebidas durante a liminar. Caso haja ordem explícita do Judiciário, o gestor deve cumpri-la. Na ausência de ordem clara, consulte a legislação aplicável ao seu ente: estatutos de servidores ou leis locais de RPPS muitas vezes têm dispositivo semelhante ao art. 46, §3º da Lei 8.112/90, obrigando a devolução. Atue em conformidade com a lei vigente, pois o princípio da legalidade é primordial na Administração. Se a lei mandar restituir, em regra deve-se iniciar o processo de cobrança – salvo se houver entendimento jurisprudencial pacífico em contrário que possa sustentar uma exceção.


  • Considere as circunstâncias do caso (boa-fé x má-fé): Aja com bom senso administrativo. Pergunte-se: o beneficiário agiu de boa-fé? Ele tinha razões objetivas para crer no direito ao benefício? Por exemplo, se a liminar foi concedida num contexto em que a reivindicação dele era amparada pela jurisprudência dominante na época, há forte indicativo de boa-fé e confiança legítima. Esse cenário – como vimos – é precisamente aquele em que os tribunais superiores tendem a não exigir devolução, invocando segurança jurídica​. Por outro lado, se desde o início o pedido do segurado contrariava frontalmente a jurisprudência e mesmo assim ele obteve uma medida liminar isolada, ou se há indícios de má-fé ou fraude (como apresentação de documentação falsa), o gestor deve se inclinar a exigir a devolução, pois o pilar da boa-fé estaria ausente. Em suma, avalie o grau de boa-fé: caso presente, esse fator pesa contra a cobrança imediata; se ausente ou duvidoso, a restituição torna-se mais justificável.


  • Avalie o caráter alimentar e o impacto social: Verifique a natureza das verbas pagas. Tratava-se de um benefício essencial ao sustento (por exemplo, aposentadoria, pensão, auxílio-doença)? Se sim, tenha em mente que provavelmente os valores foram consumidos para necessidades básicas, e exigir devolução integral e imediata poderia lançar o segurado em grave dificuldade financeira. Nesses casos, a orientação jurisprudencial majoritária é proteger o beneficiário, aplicando a irrepetibilidade dos alimentos​. Assim, em nome da dignidade do beneficiário e do princípio da segurança jurídica, pode-se optar por não cobrar ou, se necessário, fazê-lo de forma mitigada (por exemplo, parceladamente). Por outro lado, se a quantia envolvida é muito elevada ou não teve natureza estritamente alimentar (imagine um caso de pagamento retroativo grande, ou uma vantagem remuneratória não diretamente ligada à subsistência), o gestor deve ponderar o interesse público de reaver recursos significativos. Cada caso requer uma análise proporcional: é diferente pedir devolução de alguns meses de pensão a uma viúva idosa, versus recuperar um montante alto pago indevidamente a título de vencimentos.


  • Proceda com transparência e devido processo: Nunca faça descontos ou cobranças de ofício sem comunicar claramente o interessado. Se a decisão for buscar a devolução, o gestor deve instaurar o procedimento administrativo adequado, notificar o beneficiário, explicitar os valores cobrados e a motivação (citar a decisão judicial final e a base legal, por exemplo). Conceda ao interessado direito de defesa e contraditório no âmbito administrativo. Essa transparência não só é exigência legal (Lei de Processo Administrativo, princípios constitucionais), como também contribui para a legitimidade e aceitabilidade da decisão. No caso de optar por não cobrar, também é recomendável formalizar essa decisão em processo administrativo, registrando as razões (citando eventualmente os precedentes do STF ou princípios de boa-fé e caráter alimentar que embasaram a escolha). Documentar e motivar a decisão agrega segurança jurídica e facilita eventuais auditorias pelos órgãos de controle.


  • Busque soluções equilibradas (quando a devolução for devida): Se ficar definido que a restituição deverá ocorrer, adote meios razoáveis de ressarcimento. Evite tentar receber tudo de uma só vez, sobretudo de pessoas em situação de vulnerabilidade. A legislação previdenciária federal sugere o patamar de 30% do benefício como limite de desconto mensal​ – um critério que pode ser seguido como referência de razoabilidade. Assim, caso o beneficiário ainda receba algum provento do RPPS, pode-se efetuar descontos mensais moderados, evitando lhe privar do mínimo necessário. Se ele não tiver mais vínculo ou benefício em manutenção, avalie a possibilidade de um acordo de parcelamento ou mesmo de compensação futura (por exemplo, abatendo de algum outro direito que ele venha a ter). O objetivo deve ser proteger o erário sem comprometer em excesso a subsistência do indivíduo. Essa abordagem gradual e humana está alinhada aos princípios da proporcionalidade e da eficiência: recupera recursos públicos de forma sustentável e reduz a chance de longas disputas judiciais.


  • Consulte a assessoria jurídica e mantenha-se atualizado: Diante da oscilação entre entendimentos do STF e STJ, é essencial ter respaldo da equipe jurídica do RPPS ou do ente federativo. Cada caso pode ter nuances legais, e a jurisprudência evolui. Por exemplo, eventuais novos julgamentos do STF em repercussão geral ou do STJ em recursos repetitivos podem surgir, unificando a questão. Portanto, mantenha-se atento a atualizações jurisprudenciais e, quando em dúvida, busque orientação jurídica qualificada antes de decidir. Essa prudência reforça a segurança jurídica dos atos do RPPS e demonstra boa-fé da gestão perante os órgãos de controle.


Conclusão


A devolução de valores previdenciários recebidos por força de liminar posteriormente revogada é um tema em que direito e gestão se encontram. O gestor de RPPS deve atuar como guardião do interesse público e dos direitos do segurado, equilibrando a necessidade de proteger o erário com a justiça e humanidade no trato com os beneficiários. Em síntese, a jurisprudência dominante nos tribunais superiores oscila: o STF tende a resguardar o beneficiário de boa-fé (especialmente em virtude do caráter alimentar dos benefícios), enquanto o STJ enfatiza a reposição ao erário para evitar enriquecimento sem causa e obedecer à legislação. Conhecer esses entendimentos e os fundamentos subjacentes (boa-fé objetiva, irrepetibilidade dos alimentos, legalidade e enriquecimento sem causa) permite ao gestor tomar decisões informadas e equilibradas. Nas decisões diárias, prevalecem a cautela e a transparência: analisar caso a caso, motivar os atos com base na lei e nos precedentes, e buscar soluções que minimizem injustiças. Seguindo esses parâmetros, o RPPS consegue resguardar a legalidade e a segurança jurídica, sem perder de vista a função social da previdência e a confiança que os segurados depositam no regime. Em última instância, cada decisão deve refletir um justo equilíbrio entre o interesse público e a dignidade do beneficiário, que é o objetivo maior de todo regime de previdência.




 
 
 

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